Criar mais um mundo possível, pavimentar a travessia de quem virá depois de mim
Written by arthur j. silva: transmasculino, mineiro, designer gráfico e de tipos. fala muito, escreve muito mais, e posta quase nada.
Eu patinei bastante para engatar na escrita deste texto.
Na verdade, se você está lendo essa versão aqui dele, quero que saiba que essa é a minha última tentativa de organização das minhas ideias, e que tudo que eu disser aqui vem de um lugar ao mesmo tempo que já anestesiado, de tanta pancada, também hiperconsciente da situação. Eu estou extremamente cansado.
Não tem como eu falar sobre o Mês Nacional da Visibilidade Trans sem falar sobre cansaço. Todas as instâncias de todas as lutas que levaram às conquistas que a comunidade trans já alcançou são embebidas pelo cansaço. Numa perspectiva de grupo minoritário, é exaustivo estar diariamente lutando por seus direitos básicos, até sem perceber, principalmente quando a luta é contra todo um sistema de opressão. É cansativo saber que já estamos na segunda metade do mês de janeiro e não me lembrar com certeza se eu vi, em qualquer mídia não pertencente a um grupo/organização LGBTQIAPN+, qualquer tipo de campanha, artigo ou mero post sobre a comunidade trans. Também como pessoa trans que recentemente saiu do armário, carrego um cansaço crônico por todas as pequenas vezes que tive que me reafirmar só nos últimos dias, em quase que literalmente todos os espaços em que ouso habitar. Enquanto leio textos de pessoas trans mais experientes nessa luta, consigo perceber o quanto esse cansaço é ancestral: estamos cansados há várias gerações.
Mas não me entenda mal, eu não vim aqui apenas para reclamar. Se não fosse pelo meu cansaço, eu não teria nem essa possibilidade de escrever um texto público tagarelando sobre minha identidade. Me afirmo como trans hoje de maneira aberta e irrestrita em (quase) todos os momentos e espaços porque cansei de relevar olhares, relativizar violências, me esconder. Acredito realmente que o cansaço é um grande motor de revolução, assim como a raiva e a tristeza, só precisa ser manejado de maneira inteligente e responsável. Nem só de esperança se sustenta o corpo marginalizado.
Esta é a primeira vez que consigo aceitar um convite para falar sobre minha transição publicamente, sem precisar me esconder atrás de um nome que já não é meu. Por ter saído completamente do armário recentemente, vez ou outra tenho a sensação de que ainda não tenho a bagagem necessária para falar sobre essa travessia, já que ainda tem muita coisa pela frente. Mas, ume grande amigue minhe não cansa de me lembrar que a travessia é circular e é mais fácil quando compartilhada, então aqui estamos.
Para Paul B. Preciado, “(…) Falar é inventar a língua da travessia, projetar a voz numa viagem interestelar: traduzir nossa diferença para a linguagem da norma (…)” (2020, p. 25). Tenho me questionado muito sobre a importância de falar sobre minhas experiências. Sempre fui de registrar em longos textos pessoais, diversos tipos de diários, tumblrs, blocos de notas, cadernetas de desenho e escrita, playlists, cartas datilografadas, tudo que me é possível, todas as sensações e momentos que não quero esquecer, independente da temática, mas nunca fui de mostrar para mais que duas pessoas. Parte disso se deve, claro, ao fato de que foram mais de 22 anos me escondendo em um regime conservador cristão, onde o máximo que eu poderia fazer era compartilhar minhas relações heteronormativas e torcer para não perceberem que, na verdade, minhas relações estão longe da normatividade há anos. Tudo isso tem mudado devagar. Eu só consegui me encontrar e passar a me entender melhor com a ajuda de relatos diversos de outras pessoas trans, e sei que várias pessoas cis também passaram a entender melhor e conseguir agregar mais à nossa luta após ouvir esses mesmos tipos de relatos. Também não consigo parar de pensar em fatos como o de que apenas metade da população LGBTQIAPN+ se declara publicamente no país (levantamento da TODXS Brasil, 2020. Dado retirado do lindo e cheiroso Relatório de Sobrevivência da ONNA). Pouco menos da metade da população queer brasileira não tem o luxo de poder se autoafirmar, contar sua própria história. Falar sobre nossas transições é também um ato de carinho com quem não pode fazer o mesmo.
É engraçado, inclusive, estar falando sobre isso em uma plataforma tomada por um público das áreas criativas, porque minha transição consciente se deu concomitante à minha formação profissional. Começar a questionar meu gênero de maneira consciente foi tão natural quanto perceber que eu gostava mais de tipografia do que de ilustração na faculdade de design gráfico, e a vontade de produzir coisas feministas, bissexuais, trans, etc. para este mundinho tão tomado pela norma cis-hetero-branca que é o campo do design, veio desde o início de um desejo nato pela subversão. Eu sei que não escolhi ser uma pessoa transmasculina não-binária, mas eu escolho todos os dias me apresentar como tal, assumir este B.O que muitas vezes sai caro demais. Aprendi com Jota Mombaça e b. benedicto que “é preciso criar mundos possíveis dentro da realidade que nos é dada” (Revista Recorte, 2021, p. 211). Para mim, esses mundos possíveis vieram no formato de projetos como a Guarita Serif, meu primeiro projeto de fonte, a amapô, nome da plataforma de publicações editoriais queer que eu e meu incrível grupo de amigas desenvolvemos para nosso projeto de conclusão da faculdade, junto com nossa edição do livro Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, projeto fictício também para a universidade. Não houve um momento em que eu não me guiei pelo fogo de subverter à norma, mudar os caminhos, traçar meus próprios mapas.
E foi durante meu processo de formação acadêmica e profissional que criei e fortaleci minha belíssima rede de apoio. Poder contar com pessoas LGBTQIAPN+ e aliades foi crucial para continuar a me entender. Formei minha rede de afetos queer na mesma toada que aprendi a desenhar fontes. Depois de alguns anos, passei a adotar apenas pronomes masculinos ou neutros, escolhi meu nome, tomei meu tempo e renasci. Eu não estaria aqui se não fossem pelas pessoas que conheci nestes ambientes de formação, e sei da sorte que tive em ter encontrado cada uma dessas pessoas. mas, sempre me questiono: e quem não teve a mesma sorte que eu?
Parte importante do movimento de me cercar de pessoas que não só me amam mas também entendem na pele as diversas questões que me atravessam é saber que estou quase o tempo inteiro em uma bolha, e que a realidade fora dela é completamente diferente. Consigo contar nos dedos de uma mão quantas pessoas trans eu conheço que trabalham com desenho de tipos. E não é que nós não existimos, é que o caminho para chegarmos até a posição de estudar essas especialidades cada vez mais nichadas do design é muito mais árduo para nós. Mas e você, queride leitore, quantas pessoas trans você conhece? Para além disso, com quantas pessoas trans você convive? E com quantas pessoas trans você já trabalhou, ou quantas indicou para trabalhos remunerados?
Sei muito bem o quão confortável é o lugar da norma para quem não é dissidente, mas acredito que não há mais a possibilidade de não se posicionar. Questionar os próprios grupos de convivência (trabalho, amigos, colegas de classe, o grupo do futsal do prédio) em uma perspectiva de diversidade racial e de gênero é um movimento que todas as pessoas brancas, cis e/ou hetero deveriam estar fazendo há muito tempo. Não estou dizendo para você sair por aí procurando pessoas trans para fazer amizade de maneira banal, mas para pelo menos tentar entender o porquê seus grupos de convivência são formados pelas pessoas que são, identificar maneiras de estourar sua própria bolha. Quantes designers trans você segue em suas redes? Com que frequência você compartilha o trabalho de pessoas negras? Você tem se atentado a respeitar os pronomes de quem cruza seu caminho, ou tem tentado usar pronomes neutros ao invés de pronomes masculinos em situações discursivas que não possuem marcador de gênero definido?
É um trabalho de formiguinha, eu sei. Se você parar para observar, quase tudo na nossa vida é. Mas falar sobre o Mês Nacional da Visibilidade Trans é também questionar até se cansar, e este não deveria ser um fardo apenas de quem faz parte de algum grupo minoritário. Se expor ao trabalho e conteúdo gerado por pessoas trans é ajudar a dar visibilidade para essas pessoas, e criar um espaço seguro para eventuais relações que você possa ter com pessoas trans, em qualquer instância da sua vida. É bem mais fácil do que parece!
Com muito cansaço e muito carinho, deixo abaixo uma lista de pessoas para seguir e livros para ler (ou pelo menos só saber que existe). Obrigado por ler até aqui, e até a próxima 😉
Pessoas
no design, desenho de tipos e criatividade
- b. benedicto
- L Leitenperguer
- Ícaro Fagali
- Kael Vitorelo
- Lua Mota
- Mb Carvalho
- Eva Silvertant
- Schessa Garbutt
- Silas Munro
- Nick Auler
- Camila Abdanur
- Kel Veira
- Phædra Charles
- Lipe Maria
- Lui Foito
- Ellícia Maria
- Diana Salu
influencers, musicistas, escritories
- Jonas Maria
- Amara Moira
- Nick Nagari
- Mar Facciolla
- Dante Olivier
- Bruno Almeida
- Laerte
- Rebecca Gaia
- Alina Durso
- Aria Rita
- Liniker
- Linn da Quebrada
- Jup do Bairro
- Daniel Zezza
- Juvi Chagas
- Geni Núñez
- Erika Hilton
- Nico de Morais
- Lila Habib
- Jupiter Pimentel
- Luca Scarpelli
- Claire Olivia
instituições e organizações
- Brava
- IBRAT Nacional
- ANTRA
- Casa 1
- Canto Baobá
- Casa Florescer 1
- e Casa Florescer 2
- Revista Estudos Transviades
- Archivo de la Memoría Trans
- Museu Transgênero de História e Arte
Livros
- Um Apartamento em Urano: Crônicas da Travessia, por Paul B. Preciado
- Não vão nos matar agora, por Jota Mombaça
- Pageboy: Memória, por Elliot Page
- Corpos que importam, por Judith Butler
- Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas, por Paul B. Preciado
- Extra Bold: um guia feminista, inclusivo, antirracista, não binário para designers, por vários autores
- E se eu fosse puta, por Amara Moira
- Profecia, por Diana Salu
- Problemas de gênero, por Judith Butler
- O pensamento hétero, por Monique Wittig
Bibliografia
BENEDICTO, B. letras para uma travessia circular. In: Revista Recorte, ano 1. São Paulo: Recorte, 2021. p. 202–213.
MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
PRECIADO, Paul B. Um Apartamento em Urano: Crônicas da Travessia. Tradução de Eliana Aguiar. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
TODXS Brasil. Pesquisa Nacional por Amostra da População LGBTI+ — Identidade e perfil sociodemográfico. TODXS Brasil, 2020. Disponível em: <https://www.todxs.org/biblioteca/?material=pesquisa-nacional-por-amostra-da-populacao-lgbti-identidade-e-perfil-sociodemografico>.