NÃO É QUESTÃO DE SUPERPODERES
Written by Dafne Saqueti: De alma velha e vida efêmera, pesquisadora, estrategista e escritora como caminho para aliviar o peito e articular mudanças.
Comecei os rascunhos pensando em como poderia ser didática e explicar a importância do dia de hoje. O 17 de maio é a data que marca o Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, então, poderia me debruçar em vários argumentos que reafirmam a importância da data, mas acredito que, no macro, isso é sabido e, para os detalhes, buscas rápidas podem apaziguar as dúvidas. O que farei, então, é falar de percepção, com parcialidade e o gosto de um café fresco na boca, se tiverem tempo, venham comigo.
Há pouco tempo, me deparei com um vídeo aleatório que falava do impactante momento em que você descobre que não tem superpoderes, só não é hétero. Não consigo descrever o enredo desse vídeo ou sequer dar os créditos que deveria, mas esse conceito ficou por dias morando na minha cabeça.
Quando a gente “foge do que é posto como norma” em algo tão fundamental quanto os afetos ou identidade, há um sem número de ações que precisam ser constantemente pensadas. Quais simulacros precisam ser reproduzidos, quais frases precisam ser emuladas, qual postura é esperada de nós para que possamos simplesmente ter a passabilidade que nos permite integrar o meio? Esse movimento, e aqui falo por mim, passou por algumas etapas: a primeira, somente “era”, não havia um pensamento consciente ou um entendimento, mas a noção de que certas posturas traziam resultados melhores… com a tomada de consciência, passou a ser quase teatral, criando as próprias deixas, organizamos as histórias e, em vários casos, debruçando cuidadosamente sobre os pronomes de cada frase dita.
O tempo passa, a vida se desenha, a autonomia acaba chegando e é possível que possamos definir claramente quais batalhas queremos seguir. Não é uma ordem imperativa de acontecimentos e as vivências são tão múltiplas quanto as trajetórias das pessoas que as trilham, mas no cenário de que as coisas são postas à mesa, sequer nesse momento o ciclo se encerra.
Muito se fala e acaba até se cobrando que as pessoas “saiam do armário”, mas caso você não saiba, essa não é uma ação que tomamos uma única vez. Cada novo ambiente de trabalho, círculo de conhecidos, eventos sociais, festas de família, interações despretensiosas, eventos, uma simples viagem de uber… cada um desses momentos é um novo pensar se a sua orientação sexual pode ou não ser algo aparente. Claro, falo aqui como uma mulher cis que performa até que bastante os estereótipos de feminilidade, então a passabilidade é diferente, mas o medo imagino que seja uma variável compartilhada. Como será o tratamento quando a pessoa perceber — independente do tempo que isso demore pra acontecer?
Ser posto como quase invisível em políticas públicas, em apresentações sociais, em convites que incluem um “+1” e ter o grito por igualdade de direitos silenciado acaba sendo uma constante e, como toda constante, beira o naturalizado. As esferas são diferentes, os impactos são múltiplos, mas o sentimento de: quando poderei simplesmente ser? Acompanha cada passo.
Se fizermos os devidos recortes entre as comunidades, o silêncio é pior. Se mesclarmos outros grupos de minoria de direitos, o silêncio é assustador. Brigamos constantemente por sermos socialmente e politicamente ouvidos, mas brigamos também por afeto, por companheirismo, por podermos existir de maneira aberta e por não ser resumidos a grupos homogêneos com demandas unificadas.
Se achamos que temos superpoderes, ouso dizer que é só porque o mimetismo e o simulacro acabam sendo uma ferramenta de sobrevivência que ativamos ainda muito cedo, ainda no processo de formação ou mesmo antes de termos consciência de que seremos parte de estigmas, estereótipos, fetiches, padrões ou outras ferramentas de pasteurização.
Hoje é um dia importante para divulgação e para busca de informações, mas imagino que já tenha passado pelo impacto dessas comunicações, então, se me vale um pedido pontual para esse dia, peço que exercite a escuta, a escuta ativa e afetuosa, o olhar cuidadoso e o real interesse para revisitar os comportamentos que são ativados a cada dia. Falo com você que “faz parte da comunidade” e com você que “não faz”, falo aqui com quem vive em sociedade e que quer perceber o impacto que suas ações podem causar na realidade individual daqueles que te cercam. Ouça, apoie e se perceba como sujeito ativo da sua história e daqueles que te acompanham.