Redesign de banheiros públicos em um mundo pós-binário 

Written by Bruna Lima: Estrategista de Marca e Nômade Digital. Trabalha com Branding e Marketing Digital desde 2016. Hoje, atua junto à uma rede de freelancers para prestar serviços de Branding, Social Media e Desenvolvimento de Websites.

Faaala, pessoal! Tudo bem por aí? 

Vocês já pararam para pensar como seria o mundo se nós simplesmente não falássemos sobre gênero? Se esse fosse um espectro tão amplo e fluido que as pessoas se permitam expressar livremente, sem se encaixar em uma caixinha ou outra, inclusive quando vão no banheiro do boteco. 

O tema foi assunto da palestra “Potty Talk: Service Design Post-Binary” (Conversa de Penico: Design de Serviço em Um Mundo Pós-Binário) dada por Eli Robinson (UX Designer e Pesquisadora) e Cal Thompsom (Vice Presidente de Design do Headspace) que aconteceu no SXSW 2024, em Austin (Texas, EUA).

Uma pessoa comum usa o banheiro cerca de sete vezes ao dia. Se considerarmos 8 horas de sono, isso quer dizer que de duas em duas horas nós temos uma necessidade fisiológica que precisa ser suprida. Portanto, o acesso a um banheiro público de segurança é um dos itens fundamentais para que você tenha acesso a uma vida pública. Seja no trabalho, na academia ou no barzinho: em algum momento, você pode precisar de usar o banheiro.

Mas o que para muitos pode ser uma experiência banal – ir ao banheiro – para pessoas que dissidem da cisheteronormatividade* pode ser uma experiência desnecessariamente constrangedora e, por vezes, perigosa. Eli Robson conta: “A minha vida toda eu fui a pessoa que era expulsa do banheiro, seja o feminino ou masculino. […] Eu estou até acostumada.” 

Parece óbvio: todos deveriam ter direito ao uso de banheiros públicos sem sofrer importunação ou violência de qualquer natureza, mas infelizmente situações como essa são comuns no Brasil e no mundo.

A questão de gênero 

O cérebro humano aprende por repetição: quanto mais executamos uma tarefa, mais fortalecemos a conexão entre esses neurônios. Esse processo, chamado plasticidade sináptica, é essencial para a memória e aprendizado. Nesse sentido, Cal Thompson sugere que, ao nos forçar, repetidamente, a escolher entre feminino e masculino, as sinalizações de banheiros públicos estariam ajudando a reafirmar a dualidade de gênero.

Apesar disso, a fluidez de gênero é uma característica intrínseca do ser humano, presente em muitas culturas ao redor do mundo, independentemente da época. Um exemplo disso eram os “Two-Spirit” nos povos indígenas nativos da América do Norte. O termo é usado para se referir às pessoas que teriam ambos os espíritos, masculino e feminino, sendo dotadas de habilidades de ambos os gêneros. Essas pessoas ocupavam lugar de destaque em suas comunidades, desempenhando papéis importantes como mediadores, curandeiros ou líderes espirituais (Indian Health Service).

Já em Sulawesi, uma ilha na Indonésia, o povo Bugis reconhece cinco gêneros que representam diferentes maneiras de estar no mundo: makkunrai e oroani representam o feminino e o masculino. Os calalai nascem do sexo feminino, mas assumem papéis de gênero masculinos. Já as calabai nascem do sexo masculino, mas assumem papéis de gênero femininos. O quinto gênero, os bissu, não se considera nem masculino nem feminino. Todos os gêneros são reconhecidos por desempenhar um papel importante na sociedade, e nenhum deles é atacado ou perseguido (BBC, 2021).

Sexo biológico, Identidade de gênero e Expressão de Gênero

A distinção entre sexo biológico e identidade de gênero é essencial para promover uma compreensão mais inclusiva e respeitosa da diversidade humana. O sexo biológico refere-se às características físicas, como cromossomos e genitália. No entanto, essas características não são sempre binárias, como é o caso das pessoas intersexo, cujos corpos não se encaixam nas definições tipicamente disponíveis para masculino ou feminino.

A identidade de gênero, por outro lado, é a percepção interna que a pessoa tem de si mesma, podendo ou não corresponder ao seu sexo biológico. Esta identidade pode ser cisgênero, quando há correspondência entre sexo biológico e identidade de gênero, ou transgênero, quando não há. Além disso, existem identidades não-binárias, que não se encaixam exclusivamente nas categorias de masculino ou feminino, ou que se encaixam em ambos, como é o caso dos “Two-Spirit”.

Já a expressão de gênero é a maneira como uma pessoa apresenta seu gênero ao mundo através de comportamentos, vestimentas e outras formas de expressão.

O novo “normal”

Pesquisas comprovam que a pandemia e o isolamento social permitiram que as pessoas assumissem uma maior fluidez nas identidades sexuais e de gênero, com um aumento significativo da comunidade LGBTQIA+, principalmente entre a população mais jovem (G1, 2022).

Isso pode ser atribuído ao fato de que o isolamento social ofereceu às pessoas mais tempo para refletir e explorar novas identidades de gênero e orientações sexuais. Somado a isso, uma crescente e massiva discussão sobre o assunto nas redes sociais ganhou visibilidade, permitindo que as pessoas tivessem mais acesso a informações e se sentissem seguras para se identificar como transgênero ou não-binárias.

A chefe do Laboratório de Relações Sociais, Comportamentos e Diversidade da Universidade Trent, Karen Blair, observa que, embora a cultura dominante ainda envie a mensagem de que a maioria das pessoas é heterossexual, a sexualidade existe em um espectro. Muitos se enquadram em algum ponto intermediário, mas não têm motivação para questionar sua sexualidade se os “padrões normais” se encaixarem suficientemente.

Portanto, a pandemia e o lockdown podem ter sido o gatilho inicial para uma jornada de autoconhecimento profundo para muitos. A psicóloga clínica Jennifer Guttman afirma que “mais do que nunca” seus pacientes estavam explorando suas orientações sexuais. “Dos seus 65 pacientes, ela estima que 10 a 12 repensaram sua sexualidade naquele período, em comparação com apenas um cliente que havia feito o mesmo antes da pandemia” (G1, 2022).

Com o aumento da visibilidade e aceitação da diversidade de expressões de gênero durante a pandemia, emerge um novo cenário pós-binário que desafia e redefine as normas tradicionais de gênero. Nesse novo contexto, as identidades de gênero não são mais confinadas a categorias rígidas. Em vez disso, há um reconhecimento crescente da fluidez de gênero, permitindo que indivíduos explorem e expressem suas identidades de maneiras que anteriormente poderiam ter sido suprimidas ou ignoradas.

Este novo paradigma não é apenas uma questão de aceitação social, mas também molda a forma como as instituições e políticas públicas tratam a diversidade de gênero. Nesse sentido, as construções públicas também precisam acompanhar essa mudança de mentalidade.

Banheiros públicos em um mundo pós-binário 

Diversas empresas de arquitetura e design já estão projetando soluções que visam sanar esse problema. A MixDesign (https://www.mixdesign.online/), uma empresa de design de Nova York, é um exemplo disso. Em um projeto feito para a Universidade de Gallaudet, em Washington, D.C., os tradicionais banheiros feminino e masculino abriram espaço para um ambiente único, acessível e inclusivo não apenas para todos os gêneros, mas também para pessoas com deficiência.

Em vez das divisórias tradicionais, foram instaladas paredes do teto ao chão, criando cabines individuais e garantindo maior privacidade. O conceito aberto, sem portas e com duas entradas, garante mais visibilidade e segurança. Além disso, o banheiro conta com um lounge integrado para promover a movimentação de pessoas na área.

O banheiro também é acessível para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, e as cores do acabamento e sinalização foram pensadas de forma a criar mais contraste e facilitar a leitura para pessoas com deficiências visuais.

Esse é um exemplo de design de banheiros públicos prático e que visa celebrar a diversidade enquanto preserva a segurança e a privacidade de seus usuários. O redesign desses espaços garante que todos possam participar da vida pública com dignidade e segurança.

A polêmica do banheiro unissex

Os banheiros unissex já existem e foram pauta de debates polêmicos no Brasil e no mundo. A preocupação com a segurança é um dos principais argumentos apresentados contra sua implementação. Muitas pessoas temem que a remoção da divisão por gênero possa criar situações em que a privacidade e a segurança, especialmente de mulheres e crianças, estejam comprometidas. Esse receio é baseado na ideia de que indivíduos mal-intencionados possam se aproveitar do acesso irrestrito a esses espaços para cometer assédios ou abusos.

No entanto, a implementação de medidas de design específicas para aumentar a segurança, como as usadas na Universidade de Gallaudet — cabines individuais fechadas do chão ao teto e áreas comuns abertas, visíveis e bem iluminadas — contribui para a criação de um ambiente seguro e desestimula comportamentos inadequados. Além disso, segundo o National Center for Transgender Equality (2015), banheiros segregados por gênero já não são seguros para pessoas transgênero e não-binárias, uma vez que correm risco de agressões físicas ou verbais independentemente do banheiro que escolhem usar.

Embora polêmicos, os banheiros unissex parecem ser uma opção segura e viável quando acompanhados de design e planejamento adequados. As preocupações com relação à segurança são legítimas, mas evidências sugerem que isso pode ser mitigado com as adequações de design que ajudam a garantir privacidade e segurança. Além disso, banheiros unissex oferecem maior segurança para pessoas transgênero e não-binárias.

Enquanto isso no Brasil…

No Brasil, a discussão sobre banheiros públicos inclusivos está ganhando espaço, mas ainda enfrenta muitos desafios. Recentemente, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou um projeto que proíbe o uso de banheiros em escolas mantidas por entidades religiosas com base na identidade de gênero, obrigando pessoas trans, travestis e não-binárias a utilizarem o banheiro correspondente ao gênero designado no nascimento, ou sexo biológico, mesmo se já tiverem alterado os seus documentos pessoais.

A justificativa apresentada pelo senador Malta e pelo relator, senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), argumenta que a proibição visa evitar situações constrangedoras e embaraçosas para meninos e meninas, e que permitir o uso de banheiros com base na identidade de gênero aumenta o risco de danos psicológicos e agressões sexuais. No entanto, essas afirmações foram feitas sem a apresentação de dados concretos. A proposta foi aprovada sem contestação de parlamentares de partidos progressistas e agora segue para análise na Comissão de Educação do Senado, onde enfrentará votação nominal.

A reação à proposta tem sido intensa, com críticas significativas de membros da comunidade LGBTQIA+. A deputada trans Duda Salabert (PDT-MG) considerou o projeto sem nexo, questionando como a proibição seria aplicada na prática sem invadir a privacidade das pessoas.

Em nota, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) (2023) ressaltou: “No sentido de pensar estratégias para interromper as violências e derrubar de vez o apartheid de gênero existente em sociedades organizadas em uma lógica cis-centrada e binarizada que tem vitimado pessoas trans, defendemos que pessoas trans e travestis utilizem banheiros e demais espaços segregados por gênero de acordo com a autodeterminação e expressão de gênero da pessoa […].”

Conclusão

A discussão sobre o redesign de banheiros públicos em um mundo pós-binário é multifacetada e complexa, envolvendo aspectos de segurança, privacidade, acessibilidade e direitos humanos. A implementação de banheiros inclusivos, como os projetados pela MixDesign, mostra que é possível criar espaços que acolham a diversidade de gênero e promovam a segurança de todos os usuários. Contudo, essa mudança também enfrenta resistência significativa, alimentada por preocupações legítimas e preconceitos arraigados.

A questão essencial é: como equilibrar a necessidade de segurança com a inclusão e o respeito à identidade de gênero? Será que banheiros unissex com design inovador podem realmente resolver as preocupações de segurança? E como podemos garantir que as políticas públicas acompanhem as mudanças sociais e promovam a dignidade e a igualdade para todas as pessoas?

Essas perguntas são cruciais para avançarmos no debate. É fundamental que continuemos a dialogar e a questionar as normas estabelecidas, buscando soluções que respeitem e celebrem a diversidade humana. Só assim poderemos construir uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todos possam exercer plenamente seus direitos e viver com dignidade.

Agora me conta, você apoia ou não os banheiros unissex? Como você acredita que esse novo design pode funcionar na prática?

#DesignInclusivo #BanheiroUnissex #Unissex #BanheiroInclusivo #Inclusão #Diversidade

*A cisheteronormatividade é a naturalização e normatização de uma forma específica de se relacionar afetivo-sexualmente: um homem cisgênero se relacionando com uma mulher cisgênero, supondo uma linearidade entre corpo somático, prática sexual e identidade de gênero, linearidade que mantém o binarismo masculino-feminino.

Fontes:

Associação Nacional de Travestis e Transexuais.(2023). Nota técnica sobre direitos humanos e o direito dos banheiros: Vencendo a narrativa do apartheid de gênero que impede as pessoas transgêneras do acesso à cidadania no uso dos banheiros e demais espaçossegregados por gênero. Brasil: Antra. 

Indian Health Service. The Federal Health Program for American Indians and Alaska Natives. Two-Spirit. Disponível em: <https://www.ihs.gov/lgbt/health/twospirit/>. Acesso em: 03 de mai. de 2024.

KLEIN, Jessica. Como as identidades sexuais mudaram durante a pandemia de Covid. G1, 03 de mar. De 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/saude/sexualidade/noticia/2022/03/03/como-as-identidades-sexuais-mudaram-durante-a-pandemia-de-covid.ghtml>. Acesso em: 03 de mai. de 2024.

LIMA, Kevin. Comissão do Senado aprova projeto que proíbe uso de banheiros nas escolas com base na identidade de gênero. G1, 28 de fev. de 2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/02/28/comissao-do-senado-aprova-projeto-que-proibe-uso-de-banheiros-nas-escolas-com-base-na-identidade-de-genero.ghtml:>. Acesso em: 03 de mai. de 2024.

Mix Design. Gallaudet University: Jsac Inclusive Restrooms. Disponível em: <https://www.mixdesign.online/gallaudet-jsac-inclusive-restrooms>. Acesso em: 03 de mai. de 2024.

National Center for Transgender Equality. (2015). 2015 U.S. Transgender Survey Executive Summary. Disponível em: <https://transequality.org/sites/default/files/docs/usts/USTS-Executive-Summary-Dec17.pdf>. Acesso em: 03 de mai. de 2024.

O lugar do mundo que reconhece 5 gêneros diferentes. BBC, 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/05/13/o-lugar-do-mundo-que-reconhece-5-generos-diferentes.ghtml>. Acesso em: 03 de mai. de 2024.

“Potty Talk: Service Design Post-Binary” (Conversa de Penico: Design de Serviço em Um Mundo Pós-Binário): Disponível em: <https://omny.fm/shows/sxsw/potty-talk-service-design-post-binary >. Acesso em: 03 de mai. de 2024.