Reencontrando rituais:

o papel de marcas na busca por significado e pertencimento

Written by Fernando Martins: Designer e estrategista de marcas, apaixonado pelos símbolos e seus significados.

Photo by Dorien Monnens on Unsplash

Como marcas podem desempenhar um papel significativo na formação e sustentação de práticas rituais em nossa vida moderna.

Todo fim de ano, festividades como Natal e o Ano Novo se tornam parte do nosso tempo e participamos, de uma forma ou outra, dessas cerimônias que chegaram até nós transmitidas de geração em geração. Seja socialmente, como celebrações comunitárias, cerimônias religiosas, encontros familiares, ou individualmente, como meditação e exercícios físicos regulares, esses rituais exercem uma influência profunda sobre nossos pensamentos, comportamentos e sentimentos, permeando as estruturas de união em nossas famílias, grupos de amigos, ambientes de trabalho e comunidade.

No artigo que publiquei ainda em 2019, dissertei sobre o sentido de mantermos rituais que remontam aos tempos primitivos. Apontei como nossos velhos rituais foram, se não completamente esquecidos, transformados em meros eventos de status. Em suma, falei de como somos afetados por uma crise simbólica cuja causa pode ter sido fruto de cotidianos cada vez mais racionais e menos espiritualizados.

Não obstante, num mundo marcado por uma economia neoliberal, que promove uma cultura de individualismo, produtividade e hiperconexão, há uma tendência de desvalorização dos rituais tradicionais e coletivos em favor de uma lógica voltada ao desempenho, à eficiência e ao consumo imediato.

É sobre isso que Byung-Chul Han trata ao citar um vazio simbólico, onde imagens e metáforas, que costumavam dar sentido à vida, têm se perdido. Dentro desse contexto, destaca os rituais como técnicas simbólicas de entrelaçamento, unindo pessoas a outras pessoas ou a conceitos. Por isso, eles transformam nossa presença no mundo em, nas palavras do filósofo, um estar-em-casa, contribuindo para a construção de um mundo mais confiável.

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No pós-pandemia, quando vários problemas globais e locais emergiram afetando diferentes esferas da vida, como política, economia, saúde, meio ambiente e tecnologia, transformações rápidas e imprevisíveis contribuíram para um ambiente global marcado por incertezas.

A perda e o resgate dos rituais cotidianos emergiram como um tema cada vez mais premente, destacado no relatório de tendências da Accenture, o Fjord Trends. A análise abordou a dinâmica contemporânea entre a perda e a revitalização dos rituais, profundamente influenciada pelo impacto da pandemia, ressaltando a relação de como marcas podem fazer parte e até recuperar certos rituais perdidos.

No entanto, como profissional de branding, me questiono até onde e como, marcas têm uma alguma oportunidade e responsabilidade de apoiar pessoas em seus rituais ou, ainda, se apenas atrapalhariam um fluxo natural ao oferecer produtos e serviços muitas vezes desnecessários.

Talvez se essas marcas forem capazes de encontrar maneiras de auxiliar pessoas a se sentirem capacitadas e a recuperar um senso de controle, nesses tempos incertos que vivemos, estariam respondendo a uma necessidade humana fundamental de coesão e propósito. Ao tornarem-se conscientes disso, seriam capazes de atender um chamado, descobrindo abordagens inovadoras para integrar e promover rituais em nossas vidas cotidianas. Talvez proporcionando até reconexão e cura.

Mas isso depende de entender um pouco mais sobre o que são rituais e como eles podem ser organizados.

Por que realizamos rituais?

Uma chave para entender é: onde há rituais, há tradição. Na maioria dos casos, uma tradição é acompanhada de rituais. Enquanto tradição é a transmissão de costumes e crenças de uma geração a outra, rituais são uma série de ações realizadas de acordo com uma ordem preestabelecida e que, muitas vezes é inserida num sistema simbólico maior, como religião ou filosofia.

Photo by Foto Pettine on Unsplash
Photo by Foto Pettine on Unsplash

Catherine Bell em seu “Ritual Theory, Ritual Practice” destaca que os rituais não apenas constroem significado, identidade e poder, mas também as categorias e relações que as pessoas usam para se conhecer e conhecer os outros.

Isso vai ao encontro da própria palavra “ritual”, que deriva de “rito” e pode ser entendida como o fluir de movimento e repousouma realidade que descompõe o tempo e modula harmoniosamente as ações humanas no mundo. O que implica a capacidade dos ritos de criar uma estrutura ordenada e significativa no tempo e no espaço.

Claro que a definição de ritual varia consideravelmente de acordo com o contexto, sendo moldada pela cultura e perspectiva social. Normalmente são focados em áreas específicas da vida, como transições, celebrações ou curas, e é a sua repetição e atribuição de significado que transformam experiências cotidianas em rituais. Alguns estão tão integrados à nossa rotina que mal percebemos. Por exemplo, a maneira como preparamos nosso café todas as manhãs pode ser considerada um ritual.

O site The Conversation elencou 3 papéis importantes dos rituais na sociedade atual:

  1. Ajudam a reduzir ansiedades coletivas e individuais, principalmente quando estamos enfrentando grandes crises. Há uma pesquisa que aponta que cantar ou rezar em grupo nos faz sentir conectados e menos ansiosos, ou seja, nos dão a sensação de controle daquilo que está ao nosso redor. Quando pais estão preocupados com a segurança de seus filhos, rituais de apresentação à familia e àcomunidade — como o batismo cristão — asseguram o bem-estar da criança.
  2. Unem pessoas para celebrar marcos importantes em suas vidas. Esses eventos fornecem um momento e um lugar para reunir e incentivar as pessoas a renovarem seus laços com amigos e familiares. Em tempos difíceis do passado, como erupções vulcânicas, que afetavam o acesso a recursos essenciais, a manutenção de laços com comunidades vizinhas por meio de rituais compartilhados era fundamental para a sobrevivência, incentivando a cooperação e o compartilhamento de recursos até que as circunstâncias melhorassem.
  3. Desempenham um papel crucial ao ajudar na preservação e compartilhamento de informações culturais, ao permitir que pessoas aprendam comportamentos e padrões que facilitam a absorção e retenção de informações. Esse método é especialmente eficaz na transmissão oral de informações ao longo do tempo. Manter informações sobre a paisagem, flora, fauna e habitantes locais contribuía para a sobrevivência e prosperidade das famílias.

O desaparecimento dos rituais

“Uma das características do mundo moderno é o desaparecimento de ritos significativos de iniciação”

Mircea Eliade

Essa frase do historiador de religiões Mircea Eliade elucida bem um processo que estamos vivendo. E vou mais longe: rituais em geral estão de certa forma desaparecendo.

Photo by Julie Sd on Unsplash

Isso se relaciona com a sensação que tínhamos quando éramos crianças de que nos tornaríamos pessoas completamente diferentes quando chegássemos à vida adulta, ou que nos transformaríamos em alguém novo. No entanto, muitas vezes percebemos que chegamos nessa fase e ainda somos os mesmos, sem mudanças significativas: não tivemos alguém que nos levou a algum lugar e ensinou o que fazer. A criança não foi ensinada a ser um adulto, pronta para voltar pra casa como uma nova pessoa, marcando e firmando assim capítulos claros na vida.

Essa função, nos tempos primitivos, era desempenhada pelo chefe da tribo em grandes rituais de iniciação.

É de se perguntar onde estão os chefes tribais de hoje.

Não obstante, os líderes tribais de hoje também não passaram por nenhum tipo de ritual de iniciação, o que nos deixa em uma situação de carência. Isso não apenas afeta a transição das dependências da infância para a autonomia da idade adulta, mas também a transmissão de valores, como a qualidade e o caráter da cidadania, bem como as atitudes e crenças que conectam as pessoas aos seus deuses, à sociedade e a si mesmas.

“A abolição dos rituais leva sobretudo que o tempo apropriado desapareça. Os tempos apropriados correspondem aos capítulos da vida: “É isso o que se pode chamar de tempo apropriado e que nos é a todos conhecido pela própria experiência de vida. As formas fundamentais do tempo apropriado são a infância, juventude, maturidade, velhice e morte. […] O tempo que alguém pode ser jovem ou velho não é o tempo do relógio. Há, de modo flagrante, uma descontinuidade nisso”. Os rituais dão forma às passagens essenciais da vida. São formas de conclusão. Sem eles, deslizamos pela vida afora. Ganhamos idade sem que fiquemos velhos.”

Byul-Chul Han

Foto de Nathan Dumlao na Unsplash

Rituais de marca e marcas para rituais

O ponto de inflexão de pessoas que realizam seus rituais do mesmo modo desde o mundo primitivo até o pré-industrial, para pessoas que os realizam em plena sociedade do consumo não se dá, indubitavelmente, sem uma relação com marcas.

Seria por demais presunção e até herético (com a espiritualidade que for) dizer que os anciões viraram marcas. Porém, com o advento da sociedade do consumo, práticas rituais não desapareceram completamente, mas sua natureza e contexto mudaram de forma significativa. Podemos dizer que a relação entre esses rituais e as marcas é, no mínimo, um aspecto interessante desse fenômeno.

É possível argumentar que marcas não estão necessariamente ligadas de forma intrínseca a uma mentalidade puramente mercadológica e agressiva. Algumas podem adotar práticas mais éticas, buscar impacto social positivo e enfatizar valores que vão além da maximização do lucro. Elas podem se tornar espaços de expressão cultural, realização de propósito, identidade coletiva ou até mesmo facilitadoras de rituais que promovem conexões sociais e emocionais.

São as narrativas construídas, os símbolos e imagens que se tornam parte do tecido cultural moderno e podem até mesmo serem incorporadas em nossos rituais cotidianos. Por exemplo, o simples ato de saborear um café feito em uma cafeteira de uma marca específica todas as manhãs pode facilmente se tornar um ritual matinal.

Outro exemplo é o Crossfit (que, sim, é uma marca) possui atividades quase que religiosas, uma comunidade forte e comprometida, onde os praticantes compartilham não apenas o exercício em si, mas também valores, metas e um senso de identidade coletiva. E, assim, marcas vão assumindo funções ritualísticas em nosso dia a dia.

Photo by Victor Freitas on Unsplash

Os 4 tipos de rituais de marca

“Marcas devem trabalhar para entender o espaço em branco deixado por um ritual perdido, e depois identificar e projetar uma experiência apropriada que possa substituí-lo”

Com essa premissa, no report que citei no início, a Accenture identificou e subdividiu rituais frequentemente associados a marcas em 4 tipos, que formam uma plataforma interessante pra compreender e articular diferentes ações de marca:

Ritual como portal

Um ritual pode ser um ponto de transição entre nossos diferentes “eus”. É como se o “eu trabalhador” cedesse espaço ao “eu de lazer” enquanto lê um livro no ônibus de volta para casa, por exemplo. Ou o “eu cotidiano” pode se tornar o “eu de férias” enquanto faz as malas e ouve um podcast. Esses momentos rituais representam mudanças de papel e estado de espírito, onde nos reconectamos com diferentes aspectos de nós mesmos.

Qual aplicativo você escolhe pra ouvir música depois do trabalho? O Spotify e sua retrospectiva, que marcam a passagem de um ano, celebram de forma ritualística as músicas que o usuário experienciou durante aquele período.

Empresas como a Anjo Tintas, que organizam uma espécie de corredor humano para homenagear um empregado que, após vários anos de dedicação, conclui sua última semana de trabalho e se aposenta. Isso cria um marcante ponto de transição, simbolizando a mudança do eu enquanto trabalhador para o eu aposentado.

Outro exemplo significativo é a Timberland, que se tornou um símbolo para aventureiros e peregrinos que buscam calçados confiáveis e duráveis para suas caminhadas e jornadas. Assim, a transformação pessoal ou coletiva que uma jornada possibilita, é firmadas pela marca.

Rituais de pertença

Um ritual também pode proporcionar ou reforçar um senso de pertencimento, ou seja, fazer parte de algo, de um círculo de amigos, um grupo, uma família. Compartilhar refeições e bebidas é um ritual de união, um elo material conhecido como comensalidade, descrito por Van Gennep em seu “Os ritos de passagem.”

Ações como o brinde — quando os copos se tocam e o líquido salta de um copo pra outro significa que a bebida não está envenenada — e aceitar o presente de alguém enaltecem uma ligação entre as pessoas de forma simbólica, logo, também ritualística.

O desafio para as marcas é criar experiências que possam se tornar rituais em sua relação com o consumidor. Nesse aspecto, marcas que se associam a momentos de descontração e socialização, como a Elma chips que enfatiza seus produtos ideais para compartilhar em encontros sociais, festas ou momentos de lazer, Burger King com seus lanches rápidos nos encontros entre amigos ou familiares firmam rituais de pertença com seus consumidores.

Ritual como conforto

Momentos de “tempo para mim” são rituais de conforto, momentos de escape para melhorar a rotina.

O banho é um exemplo de atividade ritualística. A limpeza física é também espiritual: não apenas desempenha um papel fundamental na higiene diária, mas também é desempenhada como uma purificação, permitindo-nos liberar as tensões acumuladas ao longo do dia. Em diversas culturas e religiões, o banho é associado com a remoção do pecado e da culpa, de “limpar as impurezas”.

A água, considerada um elemento purificador e rejuvenescedor da natureza, desempenha um papel central em muitas religiões e tradições, onde o banho é uma parte essencial de rituais de purificação.

Marcas de autocuidado e bem-estar se enquadram nessa categoria fazendo-se presentes de forma simbólica em marcas como a Dove que tem uma imagem de pureza, especialmente em relação aos produtos de cuidados com a pele. Como marcado na icônica campanha “Real Beauty”.

A brasileira The Coffeede inspiração nipônica e ambiente minimalista e urbano, alia o ritual do café com os atributos de pureza e perfeccionismo do Japão.

Clem Onojeghuo on Unsplash

Ritual como pontos de ancoragem

Segundo Sasha Sagan, que escreve sobre encontrar significado e rituais fora das religiões tradicionais, enquanto hábitos proporcionam tranquilidade e consistência, rituais criam significado, fornecem uma âncora e, quanto mais vezes eles acontecem (seja diária, semanal ou mensalmente), mais significado eles ganham.

Produtos e serviços sempre desempenharam um papel nos rituais como âncoras ao ajudar as pessoas a fortalecerem marcos emocionais. Grandes momentos que celebramos na vida — aniversários, casamentos, Natal, Diwali — compartilhados com outras pessoas compreendem efeitos de ancoragem, ao fornecer um quadro para entender e marcar a passagem do tempo.

Como a Tiffany & Co. que é uma marca que está associada a momentos de romance, amor e ocasiões especiais, principalmente devido ao seu icônico anel de noivado, símbolo de celebração de relacionamentos e marcos emocionais na vida das pessoas.

Rituais para um mundo complexo

A multiplicidade de informações e perspectivas conflitantes que vivemos hoje cria um cenário de dissociações e ansiedades, onde buscar significado, encontrar uma narrativa coerente e alcançar uma compreensão profunda se tornam desafios constantes e cada vez mais complexos.

É nisso que consiste a força dos rituais. Formas exteriores levam a transformações internas. Gestos rituais da polidez têm, assim, consequências mentais. É por isso que eventos sociais são benquistos: oferecem a oportunidade de mimetizar a felicidade; e essa comédia nos cura com certeza da tragédia, o que não é pouco”

Byul-Chul Han

O problema dos indivíduos modernos, ditos “esclarecidos” e privados de deuses e demônios por motivos racionais, é que perigos psicológicos que gerações anteriores passaram com a ajuda de simbolos, exercícios espirituais, enfim, seus rituais (ao menos desde que não sejamos crentes, ou se crentes, que nossas crenças falhem em representar os problemas reais da vida atual), enfrentam sozinhos, ou na melhor das hipóteses, com uma orientação improvisada e na maioria das vezes pouco efetiva.

É claro que não precisamos de marcas para realizar nossos rituais, mas é inegável que o que elas representam pode contribuir para os rituais que realizamos. Marcas podem ser um aditivo simbólico, para, se não suprir essa falta, pelo menos adicionar um pouco mais de sentido pra nossa condição.

Resta para os profissionais de branding trabalhar para entender o espaço em branco deixado por um ritual perdido, e depois identificar e projetar uma experiência apropriada que possa substituí-lo, ao incorporar elementos rituais em sua estratégia de marca, para se conectar de forma profunda com os consumidores que valorizam esses rituais.

Pessoas querem — e precisam — de novos hábitos, rituais e estratégias de enfrentamento para ajudá-las a viver

Poderia dizer até que rituais seculares diários podem inspirar mudanças culturais e espirituais enormes. Vejo ainda um horizonte otimista acerca da presença de rituais no nosso dia a dia, mas sempre tendo em vista que ao olhar pra frente, não deixemos de olhar pra trás, ou como o filósofo originário Ailton Krenak afirma, se há um futuro, ele é ancestral. Um futuro para o qual precisamos observar o que faziam nossos antepassados, seja no cuidado com a terra, no cuidado com os outros, ou com nossas práticas rituais.

Falar de rituais parece ser um assunto que não se esgota tão rápido. Por isso, estamos preparando mais coisas, e vocês vão ver esse tema de novo por aqui em breve 😉

Referências

  1. “O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente” — Byung-Chul Han
  2. “Sob a Sombra de Saturno” — James Hollis
  3. “Fjord Trends 2021” — Accenture
  4. Rituals have been crucial for humans throughout history — and we still need them” — The conversation
  5. “Ritual Theory, Ritual Practice” — Catherine Bell
  6. “Os ritos de Passagem” — Arnold van Gennep
  7. “For Small Creatures Such As We” — Sasha Sagan